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As dores que herdei: uma leitura teológica e psicanalítica do trauma transgeracional


Introdução


Quantas vezes no aconselhamento pastoral nos deparamos com pessoas que sofrem profundamente sem compreender a origem do seu sofrimento? Elas dizem: "Não sei por que me sinto assim", ou "Isso não tem explicação". A psicanálise e a teologia pastoral, quando dialogam de forma respeitosa e profunda, oferecem uma chave importante: muitos dos sofrimentos que enfrentamos hoje não começaram em nós, mas foram herdados através de silencias, perdas, traumas e repetições transgeracionais.


A compulsão à repetição e o inconsciente familiar


Sigmund Freud, em sua obra "Além do Princípio do Prazer" (1920), identificou a compulsão à repetição como um fenômeno no qual o sujeito revive inconscientemente experiências traumáticas não elaboradas. Carl Jung aprofundou esse entendimento ao afirmar que o que não se torna consciente se repete como destino. Ambos reconhecem que a mente humana guarda aquilo que não consegue simbolizar, especialmente os eventos que excedem nossa capacidade de compreensão emocional.


A psicanálise contemporânea também destaca que esses traumas fragmentados reaparecem na forma de lapsos, sonhos recorrentes, sintomas corporais e padrões emocionais disfuncionais. O psiquiatra Bessel van der Kolk, em suas pesquisas com o TEPT (transtorno de estresse pós-traumático), demonstra que, durante o trauma, áreas do cérebro relacionadas à linguagem e ao pensamento racional podem se "desligar", fazendo com que a dor fique registrada de forma desorganizada no corpo e no inconsciente.


A transmissão do trauma na história familiar


A dor não processada não desaparece: ela se transmite. A epigenética, campo que estuda a influência do ambiente e das experiências na expressão dos genes, reforça que traumas não resolvidos podem afetar a descendência. Mark Wolynn, no livro "Não Começou com Você", apresenta vários estudos que demonstram como traumas de guerra, abandono, suicídio e morte prematura podem gerar uma "herança emocional" que se manifesta em sintomas psíquicos nas gerações seguintes.


Nas Escrituras, também encontramos esse princípio, como em Êxodo 20:5: "Visito a iniquidade dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração...". Esta não é uma declaração fatalista, mas uma advertência sobre o poder de transmissão do mal não resolvido. Contudo, a graça também é transmitida: "..., mas uso de misericórdia com milhares dos que me amam e guardam os meus mandamentos".


Teologia pastoral e ressignificação


A prática pastoral precisa reconhecer os sintomas da dor herdada. O aconselhamento cristão pode ajudar o indivíduo a reconstruir sua história com acolhimento, escuta, revelação e graça. Quando a dor é nomeada, ela perde o poder de aprisionamento.


O processo de cura passa por cinco etapas fundamentais:


  1. Tornar consciente o inconsciente: trazer à luz os padrões que se repetem sem explicação.

  2. Contar a própria história: verbalizar a dor é o início da restauração.

  3. Revisar a história familiar com misericórdia: entender que nossos pais e antepassados também foram feridos.

  4. Ressignificar com fé: crer que, em Cristo, toda maldição pode ser transformada em bênção.

  5. Viver em liberdade: assumir uma nova narrativa como filho(a) amado(a) de Deus.


Conclusão


Jesus é o ponto de ruptura na história do sofrimento. Ele rompe com o ciclo de dores repetidas ao carregar sobre si as nossas enfermidades (Isaías 53:4). No aconselhamento pastoral, temos a missão de ajudar as pessoas a nomear suas dores, identificar seus padrões e caminhar em direção à liberdade. As dores que herdamos podem ser curadas pela luz da consciência e pela graça de Deus. Nada está perdido. Em Cristo, toda história pode ser reescrita.


Carlos Henrique Muller filho, Teólogo e psicanalista cristão

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